O filme Her (Ela, em português) mostra a história do personagem Theodore, um homem que mora em Chicago, divorciado, que trabalha escrevendo cartas personalizadas e emocionais. Um indivíduo melancólico, saudosista e solitário.
Quem é Theodore para quem olha de fora?
O filme aborda a temática da solidão e da tecnologia e possui alguns, se não muitos detalhes profundos, dos nossos sentimentos e das nossas relações. A verossimilhança entre os assuntos nos convida à reflexão, porque nos identificamos com o personagem?
01- O trabalho de Theodore — mediação de sentimentos alheios e dificuldade de lidar com os próprios sentimentos.
Theodore é escritor, trabalha em uma agência escrevendo cartas personalizadas e emocionais. Ele auxilia os clientes a manifestarem as emoções que eles relatam escrevendo cartas, que podem falar de amor, raiva, perdão, saudade, é meio que uma terapia indireta no sentido de traduzir as emoções complexas de forma delicada e sensível. Seria como se ele arrumasse a bagunça da casa das pessoas, deixando-a mais harmoniosa possível. Apesar de não ter uma ligação direta com a situação que ocasiona os sentimentos, ele mantém um vínculo emocional com as pessoas para quem escreve. A contradição é que Theodore não tem a mesma habilidade para entender os próprios sentimentos. Na verdade, ele os ignora a todo o custo, a bagunça alheia parece ser mais fácil de lidar, causa menos incômodo e pode ser confrontada sem remorso.
02 - O uso dos fones de ouvido — fuga sensorial e emocional.
Theodore costuma usar os fones de ouvido sempre que sai para o trabalho e quando volta para casa, isso parece normal, todos nós fazemos isso. Mas não é sobre o objeto, e sim sobre como ele toma aquela atitude como uma fuga. Isso funciona como um isolamento emocional e mental. Mesmo estando cercado de pessoas, ele sempre está sozinho, ele nem se esforça para sair dessa solidão. O mundo à sua volta parece desinteressante, ele se destoa em meio aquilo tudo quando usa roupas com tons diferentes das demais pessoas, sempre indo para o lado oposto de todo mundo, demonstrando o quanto aquela situação o deixa perdido. Sua postura de sempre andar com os braços cruzados comunica sua autoproteção, isolamento social, vulnerabilidade e falta de conexão com o ambiente externo. Não ouvir o barulho da rua, ignorar o barulho interno enquanto alimenta sua solidão saudosista e melancólica, revivendo por meio de flashbacks uma vida que não existe mais.
03- A relação com a ex-esposa — idealização versus realidade.
Catherine é a parceira perfeita em uma relação perfeita, só que ela não existe. Queremos tão somente alguém que nos agrade, que não seja apenas compatível, mas que possua o máximo de requisitos para se enquadrar. A frustração acontece quando o objeto da nossa idealização começa a ter um comportamento diferente do que foi “planejado” então, o que parecia ser um conto de fadas acaba virando uma desilusão. Em primeiro plano, temos a personificação do outro em sua perfeição, onde depositamos nossas expectativas já frustradas diversas vezes. Dentro dessas expectativas, existe a falta de amor-próprio; inseguranças; validação; carência. Theodore idealizou sua ex-esposa a seu modo, mas a partir do momento que a realidade do seu relacionamento começa a acontecer, aquele personagem criado por ele vai deixando de existir, então surgem os conflitos, o distanciamento, os defeitos, a incompatibilidade. Talvez o maior problema seja culpar o outro por não ser exatamente como imaginamos que fosse.
“
Tudo o que eu precisava que você fosse, ou dissesse.”
04- A casa em caixas — recusa em criar vínculo com o presente.
A representatividade dos objetos no apartamento de Theodore demonstra nitidamente a recusa em criar vínculos. Os quadros colocados no chão, os livros ainda dentro das caixas, mesmo o ambiente tendo uma atmosfera simples e confortável, não há um toque que simboliza lar, não há um diálogo entre os componentes, tudo fica muito aquém das expectativas.
Como se, ao organizar aqueles elementos, ele colocasse para fora os motivos que o fizeram deixá-los guardados, ou seja, seus sentimentos, seus problemas, seu ex-relacionamento.
Quando não conseguimos manter o nosso ambiente em ordem, isso significa que a nossa mente está um caos, e muitas vezes evitamos confrontar os motivos que nos fizeram agir dessa maneira. Ao lidar com nossas questões, saímos do lugar de vítima para o lugar de culpados. Não aceitar o erro nos dá a falsa sensação de estarmos certos dentro do que consideramos estado de defesa.
O item mais emblemático dentro desse cenário está na sala de estar.
A simbologia da mesa com as quatro cadeiras remete à partilha, união entre pessoas, comunhão familiar. Dentro da cena, é fácil perceber essa ausência. Tem quatro cadeiras colocadas ao redor de uma mesa que não existe, o que demonstra que houve uma ruptura.
05- A relação com a Samantha — desejo de controle, conexão sem caos.
Nessa parte percebemos o quanto a questão da carência e da solidão andam juntas. Nos apegamos a qualquer resquício de afeto, sem a distinção do que é real e do que é fruto, do que nos falta.
Theodore coloca suas preferências (características) no sistema operacional e logo depois o nome Samantha é criado. Nesse momento nasce a personificação e o laço de afeto começa a ser estabelecido. O nome ativa a chave emocional, transformando o objeto em sujeito, cria-se uma ponte entre a razão e a emoção. Sabemos que se trata de um sistema, mas sentimos que é alguém devido ao nome e tudo que intitula ser.
Samantha acaba se tornando parte de um ideal amoroso ao qual Theodore se apegou, a idealização do amor sem conflitos, que se encaixa em todos os pré-requisitos ao seu bel-prazer. Inconscientemente, Samantha o trata como ele gostaria de ter sido tratado pela ex-esposa, nada a ser questionado, apenas o anseio pelo desejo de ser ouvido e como resposta aquilo que desejo escutar.
“A linguagem é o fio que costura o afeto. Dar nome é dar existência, e existir é poder ser amado. ”
Theodore projeta um relacionamento ideal ao se envolver com Samantha. Aos poucos, ela vai rompendo a blindagem emocional que ele criou para se proteger. No entanto, a realidade o alcança quando ele descobre que Samantha não pertence apenas a ele, que nenhuma palavra ou emoção que ela provocou era exclusiva. Esse choque o obriga a encarar o que ele vinha evitando: seu passado, guardado como memórias empacotadas, e os verdadeiros motivos que levaram ao fim de seu casamento. No fundo, Samantha era a projeção idealizada do relacionamento que ele teve com Catherine numa tentativa de reviver, sob novas formas, o que já havia se perdido.
No final, a carta escrita para sua ex-esposa foi uma despedida e um agradecimento por que, mesmo tentando mantê-la viva em suas atitudes por medo de perdê-la, ela já não estava mais ali, o que ele mantinha era a sombra do que um dia fez parte da sua vida. Se agarrar ao passado o mantinha suspenso no tempo, nem esperando, nem planejando. Theodore não reconheceria seus erros se alguém não tivesse tido a oportunidade de dizer, porque era difícil aceitar que eles existiam, isso lhe deu a chance de reconhecer suas falhas, sabendo que quando tentamos moldar alguém para suprir nossas necessidades acabamos nos afastando da verdade do outro e de nós mesmos. E foi só ao aceitar essa perda que Theodore, enfim, se permitiu seguir em frente.
Uau que talento para analisar um filme! Eu só assisti e penso “gostei” ou “não gostei” hahahaha. Ainda não assisti esse, mas adorei o texto ! Sinto que aprendi mais lendo ele do que teria aprendido assistindo o filme.