As malas na porta: o amor entre o luto e o recomeço
Sobre o medo de ver no outro as imperfeições que não suportamos em nós.
Eu não sei ser simples na abordagem dos temas. Sempre me vejo abraçando um assunto que me força a olhar além do que eu já sei. Creio que isso se deva à complexidade que reveste essas pautas.
O conteúdo nos instiga a buscar uma resposta, ou ao menos construir uma linha de raciocínio que possa desmistificar certos padrões. Quando nos desafiamos a procurar entender, também estamos nos colocando dentro do cenário dessas pautas.
Porque falar sobre o amor, as relações, o comportamento humano também é falar sobre a gente. É perceber que já fomos ou somos o personagem dentro das dimensões que separam a paixão do amor.
Exilamos o nosso luto pela urgência de querer ser amado. Somos mais falta do que completude. Já existiu um luto pela ruptura do que criaram de nós, e ainda procuramos essa parte que vive exilada.
Partindo desse pensamento, vamos a seguinte frase.
“As malas que eu deixo na porta para alguém que eu não conheço.”
Tem uma dicotomia ancorada nessa frase. Olhando de fora, vemos duas pessoas, dois personagens que se bifurcam.
Na perspectiva da pessoa que vive o luto da paixão (As bagagens emocionais, histórias passadas).
Quando ela perde a imagem do ser idealizado e caminha em direção ao amor e suas partes imperfeitas. Nesse momento, ela se vê questionando a si mesma sobre a ótica da paixão desfeita. O processo separa três pessoas diferentes dentro da mesma pessoa, numa dualidade entre negar e aceitar o que se perdeu.
Na perspectiva de quem foi convidado:
O desconhecido não só trazendo suas próprias malas, mas se tornando disponível em dar aquilo que falta, que também lhe falta. Reconhecendo e recepcionando as malas que já estavam ali. Numa posição de resgatar do outro, exilando o luto pela perda do idealizado e correspondendo às necessidades urgentes do enlutado.
As bagagens que nos antecedem.
Ninguém sai ileso de uma relação. Somos marcados e marcamos aqueles que convidamos para nossa vida. Quem chega também traz a bagagem dos relacionamentos anteriores.
Nessa temporalidade, o luto foi vivido ou anulado pela urgência de ser resgatado. Em tempos de interação rasa e covarde, vamos criando paixões imaginativas, porque estamos tendo menos do outro e mais de quem se apresenta de si numa vitrine das redes sociais.
Presenciamos o quanto o peso da aparência interfere nas nossas idealizações amorosas. Existe um mercado que alimenta nosso desejo, e ambicionamos tê-lo. Mas, além desse item ser apenas uma peça manobrável numa indústria que lucra com o seu sonho romântico, ele também apresenta uma pessoa ideal sem bagagem nenhuma.
Aceitar a bagagem que o outro carrega é reconhecer quem veio antes. Quem esteve no lugar que você ocupa hoje. Quem ele projetou para se relacionar.
Por isso, a presença indireta de um amor passado incomoda. Ela mostra traços que talvez você não tenha apresentado ou não possua. E quando se confronta com essa imagem, nasce a insegurança. Porque o que você mostra talvez não seja suficiente para atender à demanda amorosa da paixão.
Depois do luto: o recomeço real.
E sobre quem você se torna depois do luto?
É nesse processo que a lente pela qual enxergamos o amor e a nós mesmos se ajusta. A queda do pedestal da paixão imaginária, embora dolorosa, muitas vezes nos obriga a confrontar nossa própria completude imperfeita. Descobrimos que somos mais do que a imagem que projetamos ou o reflexo do desejo alheio. Essa é a parte que vive exilada, a que se liberta do ideal e aprende a abraçar o real – um amor que não precisa ser 'perfeito', mas que é profundo justamente por suas falhas e aprendizados. Passamos a buscar um encontro não de metades, mas de inteirezas dispostas a compartilhar suas bagagens, aceitando que as 'malas na porta' não são apenas de quem chega, mas também de quem convida e se permite ser visto em sua totalidade.
O frio na barriga e as perguntas que não fazemos.
A gente gosta da sensação do frio na barriga, efeito montanha-russa, mas a gente sempre volta a colocar o pé no chão por segurança. Então, acho que essa seja a perspectiva que temos sobre o amor. Porque mesmo sabendo o quanto custa idealizar um relacionamento "perfeito", e o preço disso muitas vezes é a frustração, continuamos apostando nesse amor lírico, e reforçamos essa ideia através dos livros, filmes, redes sociais. Onde se vende as partes bonitas, desde o personagem até a construção da narrativa, e vai afastando as partes desagradáveis. Ninguém quer viver um relacionamento tóxico, ou um relacionamento que não nos dê menos do que a gente suponha que mereça. É exatamente por isso que nos agarramos ao que nos dar aparo, atenção, porém é importante ampliar a lupa sobre o que envolve esse amor.
Se o amor chegar, eu estarei pronta para enfrentar o lado feio do outro?
E se eu aceitar essas imperfeições, eu vou gostar de ver o que eu não aceito em mim também?
O que a gente omite enquanto colocar o olhar apenas no que é bonito e aceitável?
Referências psicanalíticas: Lacan & Freud
🧠 Jacques Lacan
Os ecos do pensamento lacaniano aparecem nitidamente, mesmo que não citados:
O conceito de "falta": quando você escreve que “somos mais falta do que completude”, está diretamente evocando Lacan e sua ideia de que o sujeito é estruturado pela falta – um vazio fundamental que nunca se preenche totalmente.
A “paixão imaginária” e a queda do ideal: esse trecho dialoga com o estádio do espelho e com o registro do Imaginário em Lacan. A imagem idealizada do outro (ou de si mesmo) entra em colapso, e o sujeito é confrontado com o Real.
🧠 Sigmund Freud
A noção de luto e melancolia, principalmente na parte em que você fala sobre o “luto pela ruptura do que criaram de nós”, remete diretamente ao ensaio “Luto e Melancolia” de Freud (1917). Freud distingue esses dois estados pelo modo como o ego lida com a perda.
Podcast: Bom dia, Obvious -
Tem algo bonito em imaginar alguém chegando e encontrando as malas ali, já na porta. Como se o amor de verdade não pedisse pra gente esconder o que carrega, mas só pra ser honesto. Talvez seja isso: não fingir leveza, não tentar parecer pronto, só deixar o outro ver — e ficar, se quiser.
Lacan falava sobre isso de um jeito mais teórico, mas no fundo é simples: o amor não junta metades perfeitas, junta faltas que escolhem caminhar juntas.
Mais um texto incrível, Ka!
“Passamos a buscar um encontro não de metades, mas de inteirezas -DISPOSTAS- a compartilhar suas bagagens, aceitando que as 'malas na porta' não são apenas de quem chega, mas também de quem convida e se permite ser visto em sua totalidade.”
Destaquei o “dispostas” pq pra mim o maior desafio tem sido esse.. é quase sagrado um encontro com pessoas dispostas e disponíveis a aceitarem a alteridade em tempos tão individualistas. To na beira do cinismo, mas ainda tendendo mais à esperança.
Adorei seu texto! ♥️